Uma boa dica de livro, é justamente o do título desse post: Ao Correr da Pena. Escrito por um jovem José de Alencar, ainda não maduro ou amargo por assim dizer, o livro é uma coletânia de seus folhetins escritos entre 1854 e 1856, muitos dizem gostar do livro porque podem traçar um perfil intelectual do escritor ou perceber sua evolução, indico a obra por se tratar de uma coletânea de ascedentes das crônicas, os folhetins, que tinham como regra principal comentar, no jornal dominical, os acontecimentos semanais daquela época, o Rio de Janeiro do século XIX, porém não se podia perder a leveza e a graça, pois devia ser também literatura e não apenas um mero texto jornalístico, e é isso que me fascina. Literatura e documento histórico, poder comparar as épocas, reviver a política e acontecimentos distantes e desfrutar de uma obra harmônica, literária.
As coisas às vezes parecem não mudar muito, veja esse trecho do Folhetim de 29 de Outubro de 1854, sobre o Passeio Público do Rio de Janeiro, não há como não comparar com os atuais Passeios Públicos e com a pressa de nossas vidas cotidianas:
Quando estiverdes de bom humor e numa excelente disposição de espírito, aproveitai uma dessas belas tardes de verão como tem feito nos últimos dias, e ide passar algumas horas no Passeio Público, onde ao menos gozareis a sombra das árvores e um ar puro e fresco, e estareis livres da poeira e do incômodo rodar dos ônibus e das carroças.
Talvez que, contemplando aquelas velhas e toscas alamedas com suas grades quebradas e suas árvores mirradas e carcomidas, e vendo o descuido e a negligência que reina em tudo isto, vos acudam ao espírito as mesmas reflexões que me assaltaram a mim e a um amigo meu, que há cerca de um ano teve a habilidade de transformar em uma semana uma tarde no Passeio público.
[…]
Contudo parece-me que o estado vergonhoso do nosso Passeio Público não é unicamente devido à falta de zelo da parte do governo, mas também aos nossos usos e costumes, e especialmente a uns certos hábitos caseiros e preguiçosos, que têm a força de fechar-nos em casa dia e noite.
Nós que macaqueamos dos franceses tudo quanto eles têm de mau, de ridículo e de grotesco, nós que gastamos todo o nosso dinheiro brasileiro para transformar-nos em bonecos e bonecas parisienses, ainda não nos lembramos de imitar uma das melhores coisas que eles têm, uma coisa que eles inventaram, que lhes é peculiar e que não existe em nenhum outro país a menos que não seja uma pálida imitação: a flânerie.
Sabeis o que é a flânerie? É o passeio ao ar livre, feito lenta e vagarosamente, conversando ou cismando, contemplando a beleza natural ou a beleza da arte; variando a cada momento de aspectos e de impressões. O companheiro inseparável do homem quando flana é o charuto; o da senhora é o seu buquê de flores.
O que há de mais encantador e de mais apreciável na flânerie é que ela não produz unicamente o movimento material, mas também o exercício moral. Tudo no homem passeia: o corpo e a alma, os olhos e a imaginação. Tudo se agita; porém é uma agitação doce e calma, que excita o espírito e a fantasia, e provoca deliciosas emoções.
Mas entre nós ninguém dá apreço a isto. Contanto que se vá ao baile do tom, à ópera nova, que se pilhem duas ou três constipações por mês e uma tísica por ano, a boa sociedade se diverte; e do alto de seu cupê aristocrático lança um olhar de soberano desprezo para esses passeios pedestres, que os charlatães dizem ser uma condição da vida e de bem-estar, mas que enfim não têm a agradável emoção dos trancos, e não dão a um homem a figura de um boneco de engonço a fazer caretas e a deslocar os ombros entre as almofadas de uma carruagem.
A boa sociedade não precisa passear; tem à sua disposição muitos divertimentos, e não deve por conseguinte invejar esse mesquinho passatempo do caixeiro e do estudante. O passeio é a distração do pobre, que não tem saraus e reuniões.
Entretanto, se por acaso encontrardes o diabo Coxo de Lesage, pedi-lhe que vos acompanhe em alguma nova excursão aérea, e que vos destampe os telhados das casas da cidade; e, se for noite em que a Charton esteja doente e o Cassino fechado, vereis que a atmosfera de tédio e monotonia encontrareis nessas habitações, cujos moradores não passeiam nunca, porque se divertem de uma maneira extraordinária.
Felizmente creio que vamos ter breve uma salutar modificação nesta maneira de pensar. As obras para a iluminação a gás do Passeio Público e alguns outros reparos e melhoramentos necessários já começaram e brevemente estarão concluídos.
Entretanto o Sr. Ministro que se acautele, e pense maduramente nesses melhoramentos que está promovendo. São úteis, são vantajosos; nós sofremos com a sua falta, e esperamos ansiosamente a sua realização. Mas, se há nisto uma incompetência de jurisdição, nessa caso, perca-se tudo, contanto que salve-se o princípio: Quod Dei Deo, quod Cesaris Cesare..
Em outro Folhetim, onde comenta sobre a chegada das máquinas de costura, José de Alencar consegue de forma elegante posar ao lado de opiniões contrárias a automação industrial:
Dizem que o espírito da indústria tem despoetizado todas as artes, e que as máquinas vão reduzindo o mais belo trabalho a um movimento monótono e regular, que detrói todas as emoções e transforma o homem num autômato escravo de outro autômato.
A coletânea foi organizada pela primeira vez por José Maria Vaz Pinto Coelho em 1874:
Por sua valia histórico-literária, ainda mais que por suas louçania de estilo, estes folhetins não deviam continuar a viver dispersos como folhas soltas, que tivessem servido apenas a satisfazer exigências transitórias.
Muitas outras edições foram lançadas no decorrer dos anos. A edição atual de Ao Correr da Pena, foi organizada por João Roberto Faria em 2004, como obra da coleção Cronistas e Contistas do Brasil, e pode ser adquirida no Submarino por 9,90 ou em outras livrarias.
Foram utilizados para cotejo e estabelecimento dos textos as seguintes edições:
Ao correr da pena (org. de J. M. Vaz Pinto Coelho). São Paulo, 1874.
Ao correr da pena (org. de Francisco de Assis Barbosa). São Paulo: Melhoramentos, 1956.
“Ao correr da pena”. In: José de Alencar, Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1960, vol. 4, pp. 636-848.
Atualizou-se a ortografia e manteve-se a pontuação original.
Existe também uma versão grátis(não tão bem organizada) no Domínio Público, baixe-a e boa leitura.
“Dizem que o espírito da indústria tem despoetizado todas as artes, e que as máquinas vão reduzindo o mais belo trabalho a um movimento monótono e regular, que detrói todas as emoções e transforma o homem num autômato escravo de outro autômato.”
Não é que eles tinham razão!
Com certeza Seu Bezerra, com certeza!