As edições comentadas tendem a afastar o leitor ansioso em “mergulhar” na leitura sem interrupções – notas de rodapé, idas e vindas que rompem o fluxo narrativo. Por outro lado, essa espécie de leitura em janelas, precursora, de certo modo, dos conteúdos digitais, abre uma possibilidade única de se valer da literatura como porta de entrada para estudos cruzados com outras ciências. De amplificar um determinado tema ou período histórico a partir da exploração de um autor ou personagem.
As edições comentadas II
É difícil imaginar um modo mais prazeroso de entender a Inglaterra vitoriana, do que ler as obras de Henry James, notadamente a chamada edição de Nova Iorque, com os famosos prefácios do autor. Assim como o estudo da obra de Shakespeare dá a ver um mapa de imbricações que nos ajudam a pensar sua época. Ou, retornando ainda mais no tempo, ler Homero e seus comentadores, aumenta o alcance de nossa compreensão sobre o mundo helênico.
As edições comentadas III
Essas questões retornam com a leitura da ótima edição de “Um estudo em vermelho”, de Conan Doyle, com notas do especialista Leslie S. Klinger. A obra faz parte dos volumes ilustrados e comentados das histórias protagonizados por Sherlock Holmes, lançados no país pela Jorge Zahar, a partir de meados da década passada. Para quem não está familiarizado com a obra de Doyle, “Um estudo em vermelho” trata do encontro de Holmes e Watson. Ou seja, é obra essencial, gênese dessa parceria que iria modificar as histórias policialescas.
As edições comentadas IV
Não bastasse o imediato interesse do volume, “Um estudo em vermelho” tem em suas notas ótimos links de leitura. Pode-se pensar, por exemplo, nas Guerras do Império Britânico, no final do século XIX. Watson, antes de conhecer Holmes, foi ferido no Afeganistão (que era disputado pela Coroa inglesa e pelo Império Russo). Ou informações mais prosaicas como o surgimento da Scotland Yard, a criação da Universidade de Londres, ou a origem da maçonaria.
As edições comentadas V
Há ainda, no caso das histórias comentadas de Holmes, a abertura para a construção de uma genealogia do personagem. O que implica em estruturar as biografias de personagens secundários. Mover os passos dos protagonistas pela cidade – no caso de Londres, algo que pode ser feito pelo leitor, “in loco”, ainda nos dias de hoje. Além, de descobrir as incongruências de uma obra escrita ao longo dos anos, que escaparam ao crivo do autor. O leitor torna-se assim um organizador daquelas narrativas. Que, em contrapartida, ajudam-no a entender de modo mais sistematizado temas e circunstâncias que compõem tais obras.
José Godoy é escritor e editor. Mestre em teoria literária pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), colabora com diversos veículos, como a revista “Legado”, da qual é colunista, e os jornais “Valor Econômico” e “O Globo”. Desde 2006, apresenta o programa “Fim de Expediente”, junto com Dan Stulbach e Luiz Gustavo Medina. O blog do programa está no portal G1.