“A mulher do vizinho”, Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1962, pág. 22. – Fernando Sabino
Era domingo e o navio prosseguia viagem. Os passageiros iam sendo convocados para a missa de bordo.
– Vamos à missa? convidou Ovalle.
O passageiro a seu lado no convés recusou-se com inesperada veemência:
– Missa, eu? Deus me livre de missa.
– Não entendo – tornou Ovalle, intrigado:
– O senhor pede justamente a Deus que o livre da missa?
– No meu tempo de menino eu ia à missa. Mas deixei de ir por causa de um episódio no colégio interno, há mais de trinta anos. Colégio de padre – isso explica tudo, o senhor não acha?
Ele achou que não explicava nada e pediu ao homem que contasse.
– Pois olha, vou lhe contar: imagine o senhor que havia no colégio um barbeiro, para fazer a barba dos padres e o cabelo dos alunos. Vai um dia o barbeiro me seduz com a idéia de furtar o vinho de missa, que era guardado numa adega. Me ensinou um jeito de entrar na adega – e um dia eu fiz uma incursão ao tonel de vinho. Mas fui infeliz: deixei a torneira pingando, descobriram a travessura e no dia seguinte o padre-diretor reunia todos os alunos do colégio, intimando o culpado a se denunciar. Ia haver comunhão geral e quem comungasse com tão horrenda culpa mereceria danação eterna. Está visto que não me denunciei: busquei um confessor, tendo o cuidado de escolher um padre que gozava entre nós da fama de ser mais camarada: “Padre, como é que eu saio desta? Eu pequei, fui eu que bebi o vinho. Mas se deixar de comungar, o padre-diretor descobre tudo, vou ser castigado.” Ele então me tranqüilizou, invocando o segredo confessional, me absolveu e pude receber a comunhão. Pois muito bem: no mesmo dia todo mundo sabia que tinha sido eu e eu era suspenso do colégio. O homem respirou fundo e acrescentou, irritado:
– Como é que o senhor quer que eu ainda tenha fé nessa espécie de gente?
Ovalle ouvia calado, os olhos perdidos na amplidão do mar. Sem se voltar para o outro, comentou:
– O senhor, certamente, achou que o confessor saiu dali e foi direitinho contar ao diretor.
– Isso mesmo. Foi o que aconteceu.
– O vinho era bom?
– Como?
– Pergunto se o senhor achou o vinho bom.
O homem sorriu, intrigado:
– Creio que sim. Tanto tempo, não me lembro mais… Mas devia ser: vinho de missa!
Então Ovalle se voltou para o homem, ergueu o punho com veemência:
– E o senhor, depois de beber o seu bom vinho de missa, me passa trinta anos acreditando nessa asneira? O homem o olhava, boquiaberto:
– Asneira? Que asneira?
– Será possível que ainda não percebeu? Foi o barbeiro, idiota!
– O barbeiro? — balbuciou o outro:
– É verdade… O barbeiro! Como é que na época não me ocorreu…
– Vamos para a missa – ordenou Ovalle, tomando-o pelo braço.
Texto extraído da página de Fernando Sabino no projeto Releituras.
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